
O dia estava tão sem graça quanto tantos outros. O céu estava azul e livre de nuvens. Podia-se ver o espectro do mormaço saindo dos trilhos da estação. Figurando a cena, vários olhares curiosos se debruçavam naqueles encarregados de mantê-los afastados. Entre preces, julgamentos e especulações, tentava-se sobreviver mais um dia de trabalho. E nem Dante poderia ter pensando em um inferno mais quente.
A estação era a mais sóbria possível. Suas paredes cinza eram pintadas de anúncios de cursos, empréstimo de dinheiro e remédios contra ejaculação precoce. Os bancos laranja distribuídos uniformemente ao longo do grosso caminho berravam com o amarelo ouro da linha de segurança. Câmeras serviam de telespectadores ocultos no mundo do Grande Irmão. Para completar, Cavalgada das Valquírias dava um tom extravagantemente triunfal e macabro à atmosfera.
O trem, por si só, tinha uma expressão devastadora. As portas automatizadas estavam todas abertas, mostrando um interior descuidado e de abandono. O balaústre denunciava marcas de gordura de tantas mãos; o chão, imundo, pegadas de tantos sapatos. Mas nenhuma gota de sangue. No exterior de seu bico, notavam-se singelos respingos de sangue, agora vinho e seco. Nos trilhos, cheiro de queimado e pedaços humanos. Pernas, peito, mãos. O sangue jorrado já estava seco, opaco e escurecido. Flashes de celulares, luzes de câmeras de repórteres, bosta de pombo recheavam o suposto acidente de um inconveniente ar rotineiro.
Era no chão da estação e nos trilhos que se encontrava o absurdo da situação. Em cima da linha amarela desenhada no chão, havia uma cabeça no meio do caminho. No meio do caminho, havia uma cabeça. Como uma bola de futebol que por poucos centímetros não entra no gol, a esfera tão brutalmente recortada guardava a expressão fria de um homem branco, na casa de seus vinte, olhos castanhos já acinzentados, cabelos cacheados e lábios secos. Sua expressão não era de horror nem serenidade. Era de rebeldia. Uma mistura de raiva e satisfação transcrita em um sorriso distorcido e olhos muito arregalados. No chão, uma áurea de sangue coagulado. No ar, esvoaçantes penas esbranquiçadas. Em todo lugar, pombos e mais pombos.
– Suicídio? assim raciocinavam as mentes mais céticas.
– Até que provem o contrário.
Do sangue já seco, fazia-se uma trilha que escorria até o chão da estrada, no meio das pequenas pedrinhas na periferia dos trilhos. Uma poça de sangue também escuro demonstrava que os policiais haviam chegado com horas de atraso intensificadas pelo calor estafante. Pela maneira que o sangue se distribuía, esparramado e com diversas gotas pelo caminho dos trilhos, assim como poças em volta de cada uma das partes separadas, notava-se que o choque tinha sido um tanto brusco. A pele estava escurecida, queimada e, já rígida e fria, gradualmente sendo devorada por bichos do submundo. Além do mais, o processo de decomposição das diversas partes do cadáver – dilacerado em membros, tronco e cabeça -, foi acelerado e, no momento da apuração dos fatos, moscas, baratas, vermes e mais insetos já enfeitavam a cena por completo. Uns por fome, outros pela atração pelo mal cheiro e condições atmosféricas.
– Eu, eu.. Eu não.. Eu não vi ele.. Ele, eu… Eu estava freando e.. Eu não.. balbuciava o maquinista, ainda perdido pela ocorrência dos fatos.
– Ele veio do nada! Caiu do céu! Caiu do céu! esbravejava o segurança da estação que jurava de pés juntos e pela alma de sua mãe mortinha que não reconhecia o sujeito da estação.
O procedimento era óbvio: coletar testemunhos das pessoas do local, identificar a vítima, mandar o corpo (ou o que restou dele) para autópsia, chamar os familiares, fichar, botar numa caixa e esquecer que já ocorreu. Isso, é claro, se conseguissem identificar o corpo.
O atropelamento ocorreu por volta das 10h da manhã, horário em que as estações não se encontram demasiadamente cheias, mas tampouco vazias. O trabalho de observar as imagens gravadas pelo circuito de segurança deveria ser minucioso, mas não tão cansativo. O corpo, eletrocutado pelos trilhos do trem e atropelado pelo veículo, não oferecia muita ajuda além da cabeça absolutamente intacta. Impressões digitais, documentos, roupas, nada disso foi salvo e muito nem achado. O falecido encontrava-se sem uma das pernas e sem seu dedo mindinho. O que, é claro, não facilitava o trabalho de ninguém.
Passadas algumas horas, decidiram mandar o que tinham do corpo para evitar ainda mais danos. Um dos subalternos foi encarregado de cavar os arquivos policiais e de qualquer banco de dados disponível atrás do nome da face angelicalmente rebelde.
Os pombos irritavam. As pessoas, por fim, cansaram-se de mais uma tragédia cotidiana e continuaram seu dia. Desligaram-se as câmeras e deram os últimos depoimentos. Incrivelmente, não se conseguiu descobrir a identidade do João Ninguém, tampouco de onde tinha vindo. Suicídio? Assassinato? Não se sabia. As portas automáticas, embora mal funcionassem, impediam que qualquer pessoa saísse do trem ainda em movimento. Nenhum circuito de segurança nem testemunhas reconheceram ou notaram a presença da estranha aparição na estação. As câmeras não registraram nenhuma atividade suspeita, muito menos alguém sendo empurrado estação abaixo. Ele simplesmente estava lá.
Malditos pombos! Malditos vermes, baratas e odor cadavérico. Até que alguém prestasse queixa de desaparecimento, fixou-se o caso, fotografou-se e enterrou-se o corpo, ignoraram-se as penas e seguiram seu caminho.