Amnésia

Três e quarenta e cinco da tarde, da manhã: sem sono, sem perda, sem ganho. Quis guardar um pouco mais os restos daquela noite mal dormida. Dolorida. Maravilhosamente dolorida, as pernas ainda tremiam, marcas que durariam aproximadamente uma semana, até que outras marcas tomassem o lugar das antigas, num ciclo maravilhosamente dolorido.
A maneira mais suja e mundana de escapar e também a mais garantida – não mencionei álcool, não era tão fraca assim, eu mencionei a entrega? – entrega desordenada, desesperada, voraz. Vertiginosamente voraz: sentiram-no.
Silêncio. Encararam-se profundamente, até que ele decidiu:
– “Posso?”
Ela não respondeu, forçou cada vez mais fundo até que, sem sentir, matou. Ele, sem entender, continuava e continuava e ela pensava em toda a vida que tinha pela frente.
Dormiram abraçados, carinhos de gente que se gosta há muito tempo e se conhece há um segundo; estranhos íntimos, mas aquele tipo de intimidade cheia de espaços e vértices desviados. Não poderia fantasiar coisas do tipo “ele me salvou”, porque ele não teria capacidade pra isso, era limitado, era o meio justificado.
Não sei ao certo em que momento petrificara-se, mas a verdade é que começara a brincar com as pessoas e seus sentimentos, tentando tirar alguma diversão, mas era nada que saía, era vazio que sentia quando deitava a cabeça no travesseiro e lembrava de quem já tinha morrido.
E ela mesma era morta e os seus amigos eram todos mortos e gelados e, os que não eram, morriam aos poucos.
Ele se aproximava e ela se esquivava pra não ter que sentir aquela mão atravessando o seu estômago, ele queria sentir aquele vazio, aquele frio, ela só queria continuar.
Ela só queria continuar, como quem não quer nada, mas espera reencarnar. Tornar-se carne novamente, sangue, dor, calor, qualquer coisa consistente. Qualquer coisa que a lembre de ser gente, qualquer coisa que a lembre da gente.

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