Conheci Lily de um jeito estranho e demasiadamente contemporâneo. Coisa moderna. Foi pela Internet. Engraçado, ainda me lembro de quando escrevia minhas matérias a mão por implicância em utilizar a última palavra em tecnologia: uma Olivetti elétrica. Tinha pavor daquele troço que passava de uma linha para outra apenas com um toque do dedo numa tecla macia. E demorei uns meses para me dar com ela. Gostava mesmo da minha saudosa e arcaica Olivetti Lettera 92 a bisavó dos notebooks. Agora, vinte anos depois, faço tudo pelo computador. Inclusive pagar minhas contas. O tempo passa depressa demais. O mais assombroso: faço, também, novos amigos. Tudo sentado diante de uma tela de computador. E foi assim que conheci Lily, uma garota que, deduzo, não teve nenhum contato com uma máquina de escrever. Veja só, que nome poderoso para uma máquina. Agora, os computadores escrevem e até te corrigem caso cometa alguma barbeiragem gramatical.
Lily apareceu subitamente no meu msn. Confesso meu desconforto ao tratar de msn, que sequer é uma palavra e sim apenas uma mísera sigla de algo, ao menos pra mim, incompreensível. Pois bem, não tenho intimidade com isso, mas agora já faz parte de minha realidade. Antes falávamos por telefone, e pra mim já era uma magia impressionante. Agora falamos com os dedos tamborilando o teclado. A voz deixou de ser importante. Ganham alma as letras cintilantes que aparecem no micro. Eis Lily. Mas poderia ser Emanuel, João ou Madalena. Sem voz não dá para saber. Há o recurso das câmeras, mas Lily me surgiu assim, simplesmente Lily. E eu não sei usar câmera no micro. Sequer havia uma foto. Aceitei seu pedido de me acrescentar no tal msn, e então se deu nossas conversas intermináveis em minhas embriagadas noites insones.
Aqueles diálogos foram esquentando. Falávamos de amor, música e viagens. Lily se disse casada, e nunca perguntei detalhes de nada de sua vida. Era uma boa companhia para minhas solitárias madrugadas lúgubres. Estava tudo perfeito até começarmos a falar de sexo. Certa vez ela me disse: "hoje eu estou com um tesão incontrolável, e quando eu fico assim me dá vontade de chupar um pau". Bem, o curioso é que estávamos falando de política. E o bizarro é que eu sequer sabia como era Lily. Se feia ou bonita, gorda ou magra e, pior, homem ou mulher. Até então era apenas um bom papo. E nada mais. Esperei um pouco para responder. Não estava atônito, mas confuso. Ela deve ter percebido e disparou um constrangido: "desculpe, foi mal, saiu sem querer, vamos continuar nossa conversa". Continuamos, fingi que não houve nada, mas aquilo mexeu comigo. Fiquei com tesão. Outras vezes ela me chamava e falava tolices sem sentido. Parecia bêbada e cometia muitos erros de ortografia. Eu sempre fui paciente, nossas conversas prosseguiam, até o dia em que resolvi retomar o assunto do tesão e vontade de chupar um pau. "Hei, Lily, você gosta mesmo de chupar um pau quando fica com tesão?". Nada apareceu na tela por um momento. Agora era ela quem paralisava os dedos. Imediatamente me arrependi de ter feito tal pergunta. Fui um idiota. Mas dei o troco, pois fiz a pergunta no meio de um assunto, creio eu, de cinema. E a resposta surgiu ainda mais surpreendente que minha subida e inesperada questão: "gosto sim, você, por acaso, quer que eu te chupe?". Me parece que as mulheres gostam de fazer provocações impossíveis de serem efetivadas. Fosse num bar, ali téte-a-téte, ela não me diria isso jamais. Aliás, nunca nenhuma mulher me disse tal coisa ao vivo, nem mesmo diante de perguntas imbecis que, via de regra, eu faço a elas. Respondi: "todo homem gosta de um felatio". Preferi o termo mais acadêmico e erudito ao chulo não sei por que razão. Ela, no entanto, inabalável, se mostrou senhora absoluta da situação: "eu chuparia você agora se você quisesse". Que homem fica incólume diante de uma frase como essa disparada por uma mulher? E eu resolvi entrar de vez na brincadeira para ver até onde iria: "eu quero". Ela escreveu uma palavra irreproduzível mas que sugeria um gemido. E emendou a seguir: "então tira esse pau gostoso pra fora". Fiquei sem ação. Como assim tirar o pau pra fora diante de um computador? Não escrevi nada e ela seguiu em frente como se estivesse num frenesi incontrolável. "então, tirou? Ele tá bem duro, mexe nele vai, mexe...". Meu pau sequer estava duro, e diante de tudo aquilo, se esquivava vexado e envergonhado. Eu me sentia verdadeiramente ridículo e estúpido olhando para tela do computador. E nada escrevi, apenas lia um frenético desfile de frases atiradas com veemente furor: "vai, gostoso, deixa em sentir esse pau"..."nossa, como é grande e duro"..."hummm, mete fundo na minha boca"..."ai, humm, não goza ainda, espera...". Porra, pensei em escrever algo para ela parar com aquela bobagem mas fiquei ali estático, apenas lendo sua interminável loucura. Até que, enfim, chegou a derradeira frase emendada de uma pergunta: "nossa, que pau heim, gozou gostoso?". Escrevi singelamente: "você está tirando uma da minha cara ou algo assim?". E ela: "nossa, não vai me dizer que me desdobrei aqui e você nem ficou com tesão?". Respondi: "bem, desculpe, era pra ficar?". "Ah, vai a merda". Foi o que ela me escreveu e, imediatamente, quando pensei em responder, o quadradinho mágico me informou que ela estava "offline". Há tempos ela não aparece e estou feliz por isso. Foi minha primeira experiência sexual virtual. Não foi das melhores. Eu ainda era virgem nessa coisa. São as insânias dos tempos modernos.
Mauro Cassane
Senhoras e senhores, aproximem-se! Venham ver um espetáculo inesquecível! Não, jovem sim, você mesmo -, não tenha medo. O senhor de chapéu, sim, venha fazer seu dinheiro valer a pena. Maravilhem-se com o que há de mais angustiante, mais enojante, mais incrivelmente absurdo de suas vidas! Venham desfrutar do horror desse imenso monstro de sete cabeças, senhoras e senhores. Uma mistura misteriosa da mais indigna feiúra e sensual beleza. Essa criatura, caros expectadores, nasceu dos confins das caravelas e dos navios negreiros. Um Frankstein de desenvolvimento distorcido, cujo próprio criador ignora. Cardíacos, crianças e gestantes, por favor, retirem-se: essa cena mexerá com suas entranhas. Senhoras, segurem firme seus acompanhantes e, senhores, tomem conta de suas carteiras. Sua pele é branca que nem as nuvens, negra como carvão e amarela como a luz do sol. Seus braços são marcados pelo relevo de suas veias e suas pernas são verdadeiros blocos de concreto. Seus pés amassados levam as marcas do peso do café, do açúcar, da madeira, da cruz, que mal deixam a pobre criatura andar. Seu suor é de água doce, mas suas lágrimas derramam óleo preto. Seus longos cabelos estrelados cobrem as cicatrizes deixadas pelo chão árido. Não há nada mais curvilíneo que seu corpo, de protuberantes qualidades. Sua voz é suave como um suspiro que, como o canto das sereias, encanta os desavisados. É o mascote dos coronéis e engrenagem daqueles que em Deus confiam. Não há o que temer, caros senhores e gentis senhoras, pois não passa de uma dócil criatura. Não se intimidem com seu estado caótico, pois possuímos as rédeas. A besta é cega e alegre, capaz de se divertir com o som de seu próprio ritmo. Vibra com o canto de torcidas e se deleita com o masoquismo do calor de mil sóis! Aproveitem, portanto, senhoras e senhores, pois com alguns trocados, somente ALGUNS, é possível assistir ao espetáculo de suas vida: a incrível besta de quinhentos anos! Venham gozar da verdadeira beleza! Venham testemunhar a crua feiúra! Venham chorar com o retrato de uma nação!
Sentada no meio de infinitos corpos, meus pensamentos flutuam ao encarar a imagem que se movimenta. Balbucio algumas palavras para o espectro ao meu lado. Estou mergulhada no mar dos meus descontentamentos. E, de baixo dágua, restam somente os sons abafados do mundo exterior.
Observo os rostos: uns dormem, outros conversam ativamente, alguns se aprisionam na realidade de seus livros e MP3 players. Em geral, são expressões gastas. Rostos marcados que pousam enquanto o lado de fora se move na velocidade dos meus pensamentos. Mas há aqueles que, como eu, encaram a linha de ferro e sua paisagem caleidoscópica. É como encarar um espelho, em podemos ver, nos reflexos das linhas dos rostos, as marcas dos caminhos já percorridos. Seja a olheira roxeada, as covas ao redor dos lábios, as rugas na ponta dos olhos.
Então, no meio do quadro de rostos insípidos e sonolentos, aparecem as lágrimas. Lágrimas que acariciam a pele morena de olhos avermelhadas. Vermelho que esconde um verde tímido, que tão sublimemente decora os cabelos desgrenhados e crespos. O corpo altivo segura o peso da bolsa pesada, que quase tomba de seu ombro, e, nas costas, o peso de seu mundo. Encostada na parede encardida, deixando-se balançar pelo chocalhar do vagão, mas nunca cair dos saltos altos, procura no lado de fora consolo e paciência. A cada minuto, arrisca uma troca de olhares com o celular ou então tenta uma ligação. E, cada vez que falha, derrama mais um rio discreto de lágrimas.
Disfarço olhando ao meu redor. Mas nada me parece mais hipnotizador. Sua beleza personifica a tristeza e suas linhas poéticas. A gravidade do seu olhar me liberta do cheiro de suor e de chuva. Olho para o teto tentando inutilmente desviar minha atenção. Só que não consigo. Sofro com ela. Gostaria de poder chorar ali, deliciando-me da indiferença alheia para extravasar sem ferir o orgulho. Ainda mergulhada nas águas de meus próprios tormentos, suspiro a falta de respostas. Começo a levantar para sair.
"Next stop, Del Castilho station". Então, numa singela troca de olhares, reconhecemos nossas respectivas existências. Sorrio, mas ela desvia o olhar.
Sou cuspida para fora do vagão. Passo a caminhar ao lado do espectro, com quem troco murmúrios monossilábicos. A paisagem encontra-se estática e sólida. Os corpos apressadas e os passos ensurdecedores se movem por entre o chão sujo decorado com suas linhas amarelo ovo. Os pensamentos tornam-se menos constantes e cada vez mais abstratos. Perco-me dentro das palavras e passo a apagar aquela imagem. O celular treme no meu bolso. Alguma música está tocando, reconheço-a, mas não sei de onde.
Continuo caminhando.
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O relógio piscava para mim. O clima era quente e seco. A saga dos mosquitos acabava de começar com o verão. Minha única lua era a luz amarela do poste na rua deserta que eu observava do apartamento que me condenava ao silêncio. O sofá engolia meu corpo. Na mesa, jazia o caderno de anotações e a xícara de café pela metade. Metade cheia, metade vazia.
Levantei e caminhei pela sala a procura de consolo. Lavei o rosto tentando curar-me da loucura. Voltei para frente do sofá a observar aquela que me tira o sono. A sombra cobria metade da foto. Cabelos negros molduravam o suave rosto de penetrantes olhos cor de mel e lábios carmim. Perdi-me por horas em seu colo. As curvas me chamavam para perto. Colei em seus seios, agora, verdadeiramente planos. Por nenhum nome ela atendia. Por nenhum plano ela se rendia. O desejo aprisionado em papel.
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Primeiro quis dizer tudo, como quem avisa logo que o terreno é escorregadio; depois não quis dizer nada, como quem teme o medo alheio, o espanto, o estranho. Esquivar-me, jamais, mas e se o afastamento fosse a resposta para todas as minhas angústias e paranóias? Responderiam pa-ra-nóia ou pára-nóia, por favor, eu também quero ser feliz sem culpa, seria possível? E Freud explicaria que não, que não era possível, que nenhum ser humano é digno, que todos sabemos da nossa sujeira, dos nossos pecados imundos e por isso não nos julgamos dignos de uma felicidade pura, sem culpas ou amarras e aí escolhemos sofrer mais? Não!
Mas não, não é assim, a gente tem que se permitir, foi o que eu decidi aquele dia, não há tanto tempo assim, quando a gente se encontrou e se enxergou; estou entregue e consciente, na beira do precipício.
E você me estende a mão e diz pula porque você sabe que eu pulo e sabe que o seu incentivo é só o que eu precisava para mergulhar fundo e eu fico tranqüila, sei o que me espera e ao mesmo tempo desconheço o futuro, o destino. Fiquemos então nessa rede, cigarros, cervejas e declamações de Moraes e Pessoa; cantorias de Jobim e Caetano; olhares e silêncios e carinhos. Eternizando momentos na lembrança, nas fotografias que o cérebro guarda cuidadosamente nos álbuns da memória e que ficam ainda mais bonitas e coloridas que na hora exata. É que aí vira arte, filme, música, poesia, alegria, saudade, dor. Qualquer coisa como ah, se pudéssemos voltar e viver tudo de novo...
E de novo e de novo e de novo e de novo e de novo e de novo e de novo e de novo e de novo e repousar na mesma rede, olhando um para o outro os cigarros as cervejas Moraes Pessoa Jobim Caetano canção carinho samba e amor até mais tarde.
Até o Sol raiar.
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O dia estava tão sem graça quanto tantos outros. O céu estava azul e livre de nuvens. Podia-se ver o espectro do mormaço saindo dos trilhos da estação. Figurando a cena, vários olhares curiosos se debruçavam naqueles encarregados de mantê-los afastados. Entre preces, julgamentos e especulações, tentava-se sobreviver mais um dia de trabalho. E nem Dante poderia ter pensando em um inferno mais quente.
A estação era a mais sóbria possível. Suas paredes cinza eram pintadas de anúncios de cursos, empréstimo de dinheiro e remédios contra ejaculação precoce. Os bancos laranja distribuídos uniformemente ao longo do grosso caminho berravam com o amarelo ouro da linha de segurança. Câmeras serviam de telespectadores ocultos no mundo do Grande Irmão. Para completar, Cavalgada das Valquírias dava um tom extravagantemente triunfal e macabro à atmosfera.
O trem, por si só, tinha uma expressão devastadora. As portas automatizadas estavam todas abertas, mostrando um interior descuidado e de abandono. O balaústre denunciava marcas de gordura de tantas mãos; o chão, imundo, pegadas de tantos sapatos. Mas nenhuma gota de sangue. No exterior de seu bico, notavam-se singelos respingos de sangue, agora vinho e seco. Nos trilhos, cheiro de queimado e pedaços humanos. Pernas, peito, mãos. O sangue jorrado já estava seco, opaco e escurecido. Flashes de celulares, luzes de câmeras de repórteres, bosta de pombo recheavam o suposto acidente de um inconveniente ar rotineiro.
Era no chão da estação e nos trilhos que se encontrava o absurdo da situação. Em cima da linha amarela desenhada no chão, havia uma cabeça no meio do caminho. No meio do caminho, havia uma cabeça. Como uma bola de futebol que por poucos centímetros não entra no gol, a esfera tão brutalmente recortada guardava a expressão fria de um homem branco, na casa de seus vinte, olhos castanhos já acinzentados, cabelos cacheados e lábios secos. Sua expressão não era de horror nem serenidade. Era de rebeldia. Uma mistura de raiva e satisfação transcrita em um sorriso distorcido e olhos muito arregalados. No chão, uma áurea de sangue coagulado. No ar, esvoaçantes penas esbranquiçadas. Em todo lugar, pombos e mais pombos.
- Suicídio? assim raciocinavam as mentes mais céticas.
- Até que provem o contrário.
Do sangue já seco, fazia-se uma trilha que escorria até o chão da estrada, no meio das pequenas pedrinhas na periferia dos trilhos. Uma poça de sangue também escuro demonstrava que os policiais haviam chegado com horas de atraso intensificadas pelo calor estafante. Pela maneira que o sangue se distribuía, esparramado e com diversas gotas pelo caminho dos trilhos, assim como poças em volta de cada uma das partes separadas, notava-se que o choque tinha sido um tanto brusco. A pele estava escurecida, queimada e, já rígida e fria, gradualmente sendo devorada por bichos do submundo. Além do mais, o processo de decomposição das diversas partes do cadáver - dilacerado em membros, tronco e cabeça -, foi acelerado e, no momento da apuração dos fatos, moscas, baratas, vermes e mais insetos já enfeitavam a cena por completo. Uns por fome, outros pela atração pelo mal cheiro e condições atmosféricas.
- Eu, eu.. Eu não.. Eu não vi ele.. Ele, eu... Eu estava freando e.. Eu não.. balbuciava o maquinista, ainda perdido pela ocorrência dos fatos.
- Ele veio do nada! Caiu do céu! Caiu do céu! esbravejava o segurança da estação que jurava de pés juntos e pela alma de sua mãe mortinha que não reconhecia o sujeito da estação.
O procedimento era óbvio: coletar testemunhos das pessoas do local, identificar a vítima, mandar o corpo (ou o que restou dele) para autópsia, chamar os familiares, fichar, botar numa caixa e esquecer que já ocorreu. Isso, é claro, se conseguissem identificar o corpo.
O atropelamento ocorreu por volta das 10h da manhã, horário em que as estações não se encontram demasiadamente cheias, mas tampouco vazias. O trabalho de observar as imagens gravadas pelo circuito de segurança deveria ser minucioso, mas não tão cansativo. O corpo, eletrocutado pelos trilhos do trem e atropelado pelo veículo, não oferecia muita ajuda além da cabeça absolutamente intacta. Impressões digitais, documentos, roupas, nada disso foi salvo e muito nem achado. O falecido encontrava-se sem uma das pernas e sem seu dedo mindinho. O que, é claro, não facilitava o trabalho de ninguém.
Passadas algumas horas, decidiram mandar o que tinham do corpo para evitar ainda mais danos. Um dos subalternos foi encarregado de cavar os arquivos policiais e de qualquer banco de dados disponível atrás do nome da face angelicalmente rebelde.
Os pombos irritavam. As pessoas, por fim, cansaram-se de mais uma tragédia cotidiana e continuaram seu dia. Desligaram-se as câmeras e deram os últimos depoimentos. Incrivelmente, não se conseguiu descobrir a identidade do João Ninguém, tampouco de onde tinha vindo. Suicídio? Assassinato? Não se sabia. As portas automáticas, embora mal funcionassem, impediam que qualquer pessoa saísse do trem ainda em movimento. Nenhum circuito de segurança nem testemunhas reconheceram ou notaram a presença da estranha aparição na estação. As câmeras não registraram nenhuma atividade suspeita, muito menos alguém sendo empurrado estação abaixo. Ele simplesmente estava lá.
Malditos pombos! Malditos vermes, baratas e odor cadavérico. Até que alguém prestasse queixa de desaparecimento, fixou-se o caso, fotografou-se e enterrou-se o corpo, ignoraram-se as penas e seguiram seu caminho.
Três e quarenta e cinco da tarde, da manhã: sem sono, sem perda, sem ganho. Quis guardar um pouco mais os restos daquela noite mal dormida. Dolorida. Maravilhosamente dolorida, as pernas ainda tremiam, marcas que durariam aproximadamente uma semana, até que outras marcas tomassem o lugar das antigas, num ciclo maravilhosamente dolorido.
A maneira mais suja e mundana de escapar e também a mais garantida - não mencionei álcool, não era tão fraca assim, eu mencionei a entrega? - entrega desordenada, desesperada, voraz. Vertiginosamente voraz: sentiram-no.
Silêncio. Encararam-se profundamente, até que ele decidiu:
- "Posso?"
Ela não respondeu, forçou cada vez mais fundo até que, sem sentir, matou. Ele, sem entender, continuava e continuava e ela pensava em toda a vida que tinha pela frente.
Dormiram abraçados, carinhos de gente que se gosta há muito tempo e se conhece há um segundo; estranhos íntimos, mas aquele tipo de intimidade cheia de espaços e vértices desviados. Não poderia fantasiar coisas do tipo "ele me salvou", porque ele não teria capacidade pra isso, era limitado, era o meio justificado.
Não sei ao certo em que momento petrificara-se, mas a verdade é que começara a brincar com as pessoas e seus sentimentos, tentando tirar alguma diversão, mas era nada que saía, era vazio que sentia quando deitava a cabeça no travesseiro e lembrava de quem já tinha morrido.
E ela mesma era morta e os seus amigos eram todos mortos e gelados e, os que não eram, morriam aos poucos.
Ele se aproximava e ela se esquivava pra não ter que sentir aquela mão atravessando o seu estômago, ele queria sentir aquele vazio, aquele frio, ela só queria continuar.
Ela só queria continuar, como quem não quer nada, mas espera reencarnar. Tornar-se carne novamente, sangue, dor, calor, qualquer coisa consistente. Qualquer coisa que a lembre de ser gente, qualquer coisa que a lembre da gente.
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Acorda cedo demais, enrola na cama até se atrasar. Levanta, lentamente, arrastando-se pela casa, tirando o gosto do sono da boca, acordando a cara com água gelada. Arrasta-se de novo da portaria até o ônibus e do ponto até o trabalho, arrastando-se um pouco mais por lá, a manhã inteira.
Viver é estar inteiro em cada momento, pronto para dar o bote, à espreita. Ele estava morto.
Não há nada pior que uma semi-vida, algo além - ou aquém - da subvida, sugando momentos, como um parasita.
Depois dava as costas, indiferente, impaciente, quase mal humorado:
"- Tá tudo bem?
- Tá sim, tranquilo..."
Tranquilo era tudo o que ele não era, tudo o que não havia na sua vida naqueles dias era tranquilidade, mas as pessoas têm essa mania escrota de fazer uma pergunta tão genérica e complexa como se fosse a mais simples do mundo.
Ultrapassado mais um obstáculo, vai até o refeitório, toma um gole do café frio, lotado de açúcar, só para ouvir as fofocas do dia: a Daniele finalmente deu pro Roberto, o que enfureceu a Gisele, que fora iludida com a hipótese de um relacionamento sério e espalhou para o departamento inteiro uma história tão cabeluda sobre a primeira, que o fez até despertar.
Futilidades à parte, volta à sua sala. Encara a pilha de processos em cima da mesa; recosta-se na cadeira, espreguiçando-se; respira fundo, entediado:
"Essa porra tá aqui desde semana passada, tenho que fazer essa merda."
Mais uma olhadela para a pilha de papéis sobre a mesa, menção vacilante de levantar-se -
pega o maço de cigarros e abre o "Paciência". Perde três vezes seguidas, desiste. Abre a caixa de e-mails: ri, sem vontade; encaminha, por continuidade; discute virtualmente com a namorada.
Atende o telefone, sua mãe aos berros, exigindo soluções; quase a manda pegar a conta de luz e enfiar no - mas a ligação cai. Decide tirar o telefone do gancho, era um homem muito ocupado.
Às vezes, via-se perguntando se era mesmo o parasita se, no final, ele próprio era sugado; pelas pessoas, pelos momentos, pela própria vida.
O relógio marca 18 horas.
Fim do expediente.
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Era uma tarde como todas as outras no escritório de Investigação da Polícia. Dia cinzento, torres de burocracia, café e donuts. Tudo no seu devido lugar.
De repente, uma ligação anônima. Em um pequeno cortiço nos confins da Zona Sul, som de tiros. Mais um dia na velha Copacabana.
Ao lado de um bordel e de um pet shop, há um prédio de fachada descascada, onde moram pessoas de pele descascada e onde as putas satisfazem seus prazeres. Lugar de escória e filhos da noite. Cada andar, um problema. Alcoólatras, solitários, prostitutas, infiltração e drogados. Era a matriz coorporativa do Purgatório.
O procedimento era básico. Entravam, tiravam fotos, faziam análise forenses, buscavam entrevistar os vizinhos ("Não somos Narcóticos, somos Homicídios"), botar tudo na ficha e seguir seu caminho.
Chegando ao local, dificuldade para abrir a porta. A fechadura estava corroída pela maresia e melada de gordura de outras mãos, outros corpos. Enfim, entraram.
O cheiro era o pior que se pode imaginar. Uma mistura de inhaca de gato, merda e cadáver em decomposição. Os detetives tiveram que tampar seus narizes. Outros adicionaram o cheiro de vômito.
As paredes eram de papel de parede escuro. Pelos desenhos, parecia década de 1950. Assim como todo o resto da casa. O teto, sujo e empoeirado, abrigava somente um ventilador que rodava vagarosamente e produzia um chiado irritante. A sala, obviamente, não era limpa há décadas. Todo o apartamento parecia uma grande caixa de areia. E, para onde se olhava, via-se gatos, gatos e mais gatos.
No chão, pacotes de biscoito, ração e outras guloseimas. O carpete, que um dia fora bege, estava manchado de sangue. Havia pegadas no chão denunciadas pelo mesmo. Assim como também havia remédios em cima da mesinha, do lado do telefone.
Ah, o telefone. Atirado no chão, sem a mínima importância. Sua base estava ensangüentada, mas o fone estava banhado de sangue. E as lascas na sua ponta indicavam que fora usado para algo além de uma conversa amigável.
A grande mancha de sangue apontava para uma trilha vermelha atrás do sofá verde plastificado. Do lado desse, havia uma poltrona combinando, onde estava sentado um siamês mal-encarado. Seu pêlo estava arrepiado e a ponta de sua língua estava para fora. Possuído.
Seguindo a trilha até o corredor, os investigadores foram levados até o banheiro. Filhotes felinos tomavam água da pia que escorria. A privada com forro cor-de-rosa e o tapete de mesma cor estavam cheirando a mijo. E todo o cômodo, a morte.
Dentro da banheira, um cadáver de uma senhora. Ou o quê restava dele. Junto com ela, o corpo de outros gatos. Era uma chacina. Em sua mão, uma pistola. Do lado da banheira, uma gaveta do armário que fica embaixo da pia estava aberta. Seu olho, o único que sobrou, guardava uma expressão de medo. Da boca, saiu uma pequena barata. Os gatos tornaram-se agressivos com a aproximação do médico legista.
- Hemorragia interna afirmou enquanto examinava causada por repetidas batidas na cabeça.
Do cadáver, restou somente algumas partes do rosto e dos membros.
- As mais cartilaginosas, disse o médico.
O tronco estava quase todo comido e podia-se notar evidentes mordidas no braço e nas pernas. Nelas, podiam-se ver os ossos. Músculos e tripas estavam à mostra, assim como alguns órgãos. Em certas partes, conseguia-se observar, através do corpo, a superfície insalubre da banheira. O resto do trabalho estava sendo feito por vermes e outros bichos enquanto as fotos estavam sendo tiradas. Nas paredes, sinais de luta, uma bala no azulejo e marcas de mão. O assassino estava usando luvas, é claro.
- Senhor, não há nada na cozinha. Nem gota de sangue nem comida. interrompeu um dos subalternos, falando com o detetive encarregado da investigação.
É, talvez não fosse uma tarde como as outras no fim das contas.
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Tremulam meus olhos, sempre o esquerdo antes do direito. Sintetizo as risadas, repito velhas piadas para encher de noite nossas antigas crianças de peito e de colo com jeito de fadas. Chora-se por damas, chora-se por prostitutas, chora-se soluçando palavras. Quando são escritas e quando são lidas... Quando nascem e quando se tornam minhas piadas. Quando as pálpebras estão divididas, depois caem com a noite embriagada.
Ninguém sabia seu nome nem de onde tinha vindo. Apenas recordavam de sua pequena aberração: carregava consigo por aonde ia uma carteira de couro que consultava nos momentos mais obscuros. Quando levada à lâmpada, refletia uma luz resplandecente. Mas não sabia de fato de onde: do pequeno artefato ou dos olhos do rapaz. Era pequena, cabia na palma da mão, e era vestida com um couro velho e desgastado, sofrido pela intempérie e maus tratos. E o navegante seguia andarilho por essas terras e por esses mares, em uma época em que a vida não era uma condição, mas uma aventura. E o mundo era grande demais para caber em uma casca de noz.
Sua história era um mito. Dizia-se que era um entre três irmãos: o mais velho havia sido capturado pelo circo e era apresentado como o grande criador de pulgas, até sua misteriosa morte à beira da estrada na cama de uma puta; o mais novo, tão ensandecido que estava para sair dessa vida, que criou asas e penas até que, em um belo dia, voou, mas, não surpreendentemente, acabou sendo queimado pela inveja do sol, que o abateu como um anjo caído. De fato, quando seu pai morreu, sentiu-se por demais sozinho. A mãe, ao velar o corpo, havia chorado tanto que no inferno fez-se mar, lugar onde vagam os mortos do deserto. Ficou parada por nove dias e novas noites olhando para o horizonte, como que seguindo o corpo do marido, que já havia desaparecido no nada. E para o nada ficou fitando, alimentando a água salgada de lágrimas, de maneira que, quando essas secaram, havia criado raízes da terra e transformara-se em um girassol única flor entre o mar e o deserto. Como já fazia tempo o suficiente que sua mãe, sentindo uma terrível dor de cabeça, havia cuspido-lhe ao mundo já pronto, crescido e vestido, que pegou toda a madeira de sua casa e construiu um barco com o qual passou a atravessar todos os mares.
As lendas que cercavam suas viagens! Havia resistido ao canto das sereias e à sedução das medusas. Conheceu terras inexploradas com nativos de cor mais negra que a noite e dentes mais claro que o marfim. Passou anos dentro do estômago de uma baleia, conhecendo, assim, os mares e animais mais exóticos. Reza a lenda que chegou a uma terra sabe-se lá se não era outro mundo! onde o tempo derretia lentamente. Conheceu um fauno que habitava uma floresta em que todos os seus desenhos e sonhos eram realizados pelas mais formosas ninfas. Aprendera a ler, a escrever e a sonhar com os mais tristes poetas, lutou contra monstros de um olho só e perdeu-se em labirintos. Era considerado sábio, guerreiro e provedor de boa sorte e de milagres. Era venerado e temido, nunca direcionando uma palavra só a qualquer moribundo sequer. A destreza e a calma em cada um de seus movimentos traduziam todas as suas vontades. Com um olhar conseguia um copo de vinho, um amor por uma noite ou uma música para dançar. E sempre, sempre que nada o impedia, pegava a pequena carteira trapo de couro mal- tratado e passava horas admirando seu conteúdo.
Foi só então uma criança, que desconhecia seu mistério e seu encanto, quem desvendou seu mistério. Por curiosidade, perguntou-lhe aonde havia conseguido tal tesouro e, com uma voz serena e mais profunda que o mais fundo dos mares, escutou a mais verdadeira de todas as lendas: em uma terra cheia de mistérios e perdições, a uma criatura de caráter curioso e gosmento, sentada em um cogumelo e gozando de seu néctar dos deuses, cabia o segredo de toda uma vida, conferido por aquele que tudo vê e tudo sente. Na presença de um quadro que refletia toda a escuridão de sua alma, a pequena criatura, perante suas cadeiras com rodas em cima e no meio de uma tempestade de homens de cartola e guarda-chuvas, concedeu-lhe, de bom grado e pelo bem da hospitalidade, a causa e a solução para todos os seus problemas, entregando-lhe a pequena carteira corroída pelo tempo, em honra de todas as suas histórias.
Depois de ouvir tal coisa, tomada por uma vontade incontrolável, a criança desejou saber qual era o presente. E como não se pode ignorar o desejo de uma criança sabe-se muito bem que azar isso trará -, o navegante mostrou-lhe o artefato. Sob o juramento de silêncio sepulcral, a criança examinou curiosamente todo o objeto. Tomada por sua sabedoria infantil, entendeu o significado e, somente em seu leito de morte, anos mais tarde, quando há muito não ouvia sobre o misterioso navegante, é que, em um suspiro inaudível, ela revelou a natureza daquele segredo tão inestimável. Recordando-se não só do pequeno objeto, mas da sensação que aquele dia havia lhe proporcionado, a criança que, depois de anos, continuou uma criança -, lembrando-se do espelho com a superfície do mais fino cristal, morreu sorrindo.
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Para não dizerem que eu só escrevo sobre frivolidades como a situação internacional e as últimas razões da existência, hoje vou tratar de um assunto sério: o seio.
Para começar, por que existe o seio? Ele não está presente, ao menos não com a mesma, assim, proeminência, nos primatas que nos antecederam. É mesmo difícil lembrar outro animal que tenha seio. Quem disse “Vaca!” está obviamente tentando tumultuar. Retire-se da sala imediatamente.
Especula-se que quando nossos antepassados — ou, no caso, antepassadas — começaram a andar sobre dois pés na savana primeva, sacrificaram seu principal atrativo para os machos da sua espécie, que já naquele tempo (pelo menos os brasileiros) só pensavam nisso: a bunda empinada. À frente, e não mais as costas, da pré-mulher passou a concentrar todos os seus chamarizes sexuais quando ela virou bípede. Era preciso ter um equivalente da bunda na frente e por isso nasceram os seios. Eles seriam uma bunda que subiu na vida. A teoria não é minha, portanto não aceito protestos.
Outra teoria atribui o desenvolvimento de nádegas frontais ao fato das nossas antepassadas, ao deixarem a fase macaca, mas ainda muito longe de chegarem à fase Gisele Bündchen, terem perdido grande parte do cabelo do corpo. Ou seja: quando o bebê ia mamar na mãe não tinha mais — epa, opa — onde se segurar. Os seios vieram para dar aos bebês o que agarrar, ou no mínimo uma sensação de apoio e tranqüilidade, imprescindível na hora das refeições.
Pois é falsa a idéia de que o tamanho dos seios tenha algo a ver com a quantidade de leite da mãe.
O leite está presente nas lactantes independentemente do seu equipamento mamário e para o aleitamento bastam os mamilos.
Os seios existiriam, assim, por razões estéticas, sexuais e práticas (o conforto de bebês inseguros e, claro, de adultos com a mesma carência) e para dar dinheiro a cirurgiões plásticos e fabricantes de silicone. O aleitamento seria uma função secundária.
Não sei se você já se deu conta que o leite materno é o único alimento produzido pela natureza exclusivamente para a gente. Todos os outros estão na Terra para serem compartilhados com outras espécies, inclusive o leite materno de outras espécies. Há claro, alimentos feitos ou descobertos pelo homem que nenhum outro animal come, como o caviar — ou pensando bem, a lesma, que só deve ser comida por outras lesmas, e assim mesmo figurativamente.
Mas original e exclusivo, só o leite da mãe. Que, mal-agradecidos, tomamos por pouco tempo e logo abandonamos. Em outro escandaloso exemplo de desperdício de recursos naturais.
Belinha acordou às seis, arrumou as crianças, levou-as para o colégio e voltou para casa a tempo de dar um beijo burocrático em Artur, o marido, e de trocarem cheques, afazeres e reclamações.
Fez um supermercado rápido, brigou com a empregada que manchou seu vestido de seda, saiu como sempre apressada, levou uma multa por estar dirigindo com o celular no ouvido e uma advertência por estacionar em lugar proibido, enquanto ia, por um minuto, ao caixa automático tirar dinheiro.
No caminho do trabalho batucava ansiedade no volante, num congestionamento monstro, e pensava quando teria tempo de fazer a unha e pintar o cabelo antes que se transformasse numa mulher grisalha.
Chegando ao escritório, foi quase atropelada por uma gata escultural que, segundo soube, era a nova contratada da empresa para o cargo que ela, Belinha, fez de tudo para pegar, mas que, apesar do currículo excelente e de seus anos de experiência e dedicação, não conseguiu. Pensou se abdômen definido contaria ponto, mas logo esqueceu a gata, porque no meio de uma reunião ligaram do colégio de Clarinha, sua filha mais nova, dizendo que ela estava com dor de ouvido e febre.
Tentou em vão achar o marido e, como não conseguiu, resolveu ela mesma ir até o colégio, depois do encontro com o novo cliente, que se revelou um chato, neurótico, desconfiado e com quem teria que lidar nos próximos meses.
Saiu esbaforida e encontrou seu carro com pneu furado. Pensou em tudo que ainda ia ter que fazer antes de fechar os olhos e sonhar com um mundo melhor.
Abandonou a droga do carro avariado, pegou um táxi e as crianças. Quando chegou em casa, descobriu que tinha deixado a pasta com o relatório que precisava ler para o dia seguinte no escritório! Telefonou para o celular do marido com a esperança que ele pudesse pegar os malditos papéis na empresa, mas o celular continuava fora de área.
Conseguiu, depois de vários telefonemas, que um moto boy lhe trouxesse os documentos.
Tomou um banho, deu a o jantar para as crianças, fez a os deveres com os dispersos e botou os monstros para dormir.
Artur chegou puto de uma reunião em São Paulo, reclamando de tudo. Jantaram em silêncio.
Na cama ela leu metade do relatório e começou a cabecear de sono. Artur a acordou com tesão. Como aqueles momentos estavam cada vez mais raros no casamento deles, ela resolveu fazer um último esforço e fazer aquilo que seu marido tanto queria.
Fizeram tudo rapidinho, meio mais ou menos, e, quando estava quase pegando no sono de novo, sentiu uma apalpadinha no seu traseiro com o seguinte comentário:
- Tá ficando com a bundinha mole, Belinha... Deixa de preguiça e começa a se cuidar..
Belinha olhou para o abajur de metal e se imaginou martelando a cabeça de Artur até ver seus miolos espalhados pelo travesseiro! Depois se viu pulando sobre o tórax dele até quebrar todas as costelas! Com um alicate de unha arrancou um a um todos os seus dentes depois lhe deu um chute tão brutal no saco, que voou espermatozóide para todos os lados!
Em seguida usou a técnica que aprendeu num livro de auto-ajuda: como controlar as emoções negativas.
Respirou três vezes profundamente, mentalizando a cor azul, e ponderou. Não ia valer a pena, não estamos nos EUA, não conseguiria uma advogada feminista caríssima que fizesse sua defesa alegando que assassinou o marido, cega de tensão pré-menstrual...
Resolveu agir com sabedoria.
No dia seguinte, não levou as crianças ao colégio, não fez um supermercado rápido, nem brigou com a empregada. Foi para uma academia e malhou duas horas.
De lá foi para o cabeleireiro pintar os cabelos de acaju e as unhas de vermelho. Ligou para o cliente novo insuportável e disse tudo que achava dele, da mulher dele e do projeto dele.
E aguardou os resultados da sua péssima conduta, fazendo uma massagem estética que jura eliminar, em dez sessões, a gordura localizada.
Enquanto se hospedava num SPA, ouviu o marido desesperado tentar localizá-la pelo celular e descobrir por que ela havia sumido.
Pacientemente não atendeu.
E, como vingança é um prato que se come frio, mandou um recado lacônico para a caixa postal dele.
- A bunda ainda está mole. Só volto quando estiver dura.
Um beijo da preguiçosa...
(Extraído do livro: Este sexo é feminino /Patrícia Travassos)
Minha amiga Suzana Diniz posta no Facebook lindas crônicas de seu falecido e saudoso pai que ela tanto amou…
Eu, tenho lido e além de degustado da beleza de cada palavra, refletido e tirado lições, e aqui vou postar os textos que ela já apresentou, e espero que ela traga muitos mais, são muito bons…
Cortava pensativo o grosso tronco da àrvore, quando um garoto que me observava perguntou:
- Tio, como é que você consegue bater tantas vezes no mesmo lugar?
Como nunca tinha pensado na sua pergunta, pois só me interessava pelo resultado obtido, ou seja, cortar o tronco, respondi-lhe que era para não disperdiçar energias. Há certas coisas na vida que a gente aprende e nem sabe como, essa habilidade me foi necessária por algum tempo, hoje estamos na era da ecologia e eu fora de época.
Mas, o que ele queria saber mesmo é por que eu conseguia e os outros não, portanto insistiu na pergunta, ai disse que talvez fosse prática ou força. Então lhe perguntei: Parece que sou forte? Ele respondeu: Não. Como já esperava essa resposta, pois ainda estava pensando na sua pergunta, falei: Pois é, faço isso de propósito para que ninguém perceba. Ficou sem entender e se deu por satisfeito.
Tal curiosidade me levou a observar o que eu estava fazendo, levantava o machado acima do ombro direito, inclinando-o uns 60 graus e o arremessava contra o tronco, fazendo uma fenda, fazia o mesmo movimento do lado esquerdo, dando um espaço de 25 cm. Entre cada batida, como que mecanicamente, executava esses movimentos.
Se não mudarmos nossa posição e repetirmos sempre a mesma coisa o nosso resultado sempre será igual, não importa o quão boas sejam as nossas intenções. Às vezes, podemos estar magoando ou ferindo alguém, um toque de um lado, uma batida do outro, de novo e de novo e lá se vai um pedaço, até que um dia temos alguém partido, simplesmente porque nunca prestamos atenção em nossos atos.
Genésio *1955/2003*
A minha vista da baia da Guanabara era parcialmente prejudicada pela existência de uma série de palmeiras imperiais que embelezam a entrada central do Palácio do Catete, Zona Sul do Rio de Janeiro.
Têm cerca de 30 metros de altura e por incrível que pareça continuam crescendo, se destacam das árvores centenárias que, apesar da grandiosidade dos seus troncos e da altura não se comparam com as palmeiras, eretas e esguias que se sobressaem.
Como achava impossível que alguém decidisse podá-las, pois são muito belas, calculava, devem ter mais ou menos 70 anos, então crescem cerca de meio metro por ano, dentro de cinco anos poderei enxergar o Pão de Açúcar.
Fazia muito calor na noite de sexta feira, dormi com as janelas abertas e acordei de madrugada com os estrondos provocados pelos ventos, fechei-as, mas não acreditava no que estava vendo, o vento era tão forte que fazia as palmeiras se curvarem 60 graus no seu meio, eu pensava não resistirão.
Mas o que pensava não aconteceu, apesar de terem suas folhagens arrancadas, como que, numa tentativa de eliminar o que estava fazendo com que se curvassem, ficaram todas em pé, apenas menos viçosas, mas em breve se restaurarão.
Na vida, tempestades e tormentas virão o importante é que permaneçamos em pé e, nem sempre teremos que esperar muito tempo pois Deus faz coisas que imaginamos impossíveis acontecerem numa noite, com um pequeno sopro.
Genésio *1955-2003*
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim um tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
Clarice Lispector. In: "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
http://www.beatrix.pro.br/literatura/feliclandconto.htm
Pois é, o que é um texto, isolado, sem contexto?
O que é um texto sem a sua interpretação, o que está nas entrelinhas e no subtexto?
Pois bem, estava eu, em uma de minhas aulas do período retrasado de Produção Textual da Profª Patrícia Teles e ela trouxe esse texto, fez uma roda e nos fez trabalhá-lo em conjunto, ela nos deu um tesouro, pelo menos pra mim.
Eu costumo aproveitar ao máximo as minhas aulas, aproveitar pra minha vida.
E nem só essa, mas muitos dos nossos encontros foram proveitosos, e ficamos até amigas, nós alunas, eu e algumas colegas e ela.
Aliás, ela foi super legal num momento em que tive uma crise feia nervosa na faculdade, mas isso é detalhe, ela realmente demonstrou ser uma pessoa legal e que nos queria trazer muito mais que só ensinamentos e tarefas em sala e fora dela.
Enfim, não foi bem da Patrícia que quis abrir o parênteses pra essa crônica, apesar de ser grata por conhecer tal texto através dela, não é o centro do que quero trazer e falar.
Eu me identifiquei muito com a situação.
Quantas vezes não me deparei com a minha felicidade irreal e clandestina?
Não sei se é um mal comum, se muitos cometeram esse mesmo erro, mas sempre manter um motivo aceso pra chamar atenção ou então chegar perto de alguém, nunca fechar um determinado ciclo pela felicidade virtual de que conseguiu uma migalhinha de atenção em resposta, em retorno e muitas vezes não era nada disso, só era um retorno?
Pois é, quantas vezes nos iludimos com tal vivência, ilusão, fantasia?
Apegados aos momentos em que estamos na iminência de conseguir algo e às vezes se conseguimos, a felicidade ou prazer nem é tão grande, até ficamos tristes, pois acabou.
Já pensaram nessa possibilidade?
Que quando lutamos, brigamos por algum objetivo, muitas vezes somos vidrados no caminho e nas dificuldades e se fosse fácil não teria graça, pois conseguiríamos muito rápido?
O que mais dá prazer é a chegada ou a corrida?
Mas até onde essa corrida é saudável, é prazerosa e nos faz bem?
Chega um momento que temos que assumir e fechar, findar ciclos e conseguir o que realmente queríamos.
Já perceberam que em muitas lutas começamos buscar um foco, os caminhos nos levaram pra outros caminhos e tentamos focar naquele anterior, mas não era bem aquilo que deveria ser feito e os sinais demonstram e não seguimos, desviamos e quando vemos não é mais nada daquilo que buscamos é outra coisa sem nem saber?
Quantas vezes solicitamos pessoas por um motivo, mas na realidade queríamos atenção por outros e no meio do caminho a coisa desvia e o contato se vicia até se desgastar pela falta de foco, objetividade e perdemos a nitidez deonde queríamos chegar?
Isso é ao mesmo tempo perigoso quanto doloroso.
Precisamos perder a mania de querermos as migalhas das felicidades clandestinas e buscarmos felicidades cada dia mais reais, não é verdade?
Quando era criança, a minha como muitas outras mães, contava e colocava historinhas de fábulas como por exemplo: Gata Borralheira, Branca de Neve, Rapunzel e tantas outras heroínas que no final sempre eram felizes por encontrar seus lindos, fortes e protetores príncipes encantados.
Eu quando fui ficando mocinha, adolescente, fui modificando o que toda menina quando passa a ter corpo de mulher, pois a maturidade chega rápido às meninas, fui reparando. Natural certos pudores e vaidades, o primeiro sutiã e tantos outros tabus a serem derrubados e conquistados, as descobertas não paravam de chegar, junto as dores mensais do sangrar que toda mulher tem de sofrer.
Mas nem só de sofrimento e descobertas incômodas passamos, no meu caso, dentro de minha casa, passei pela terna experiência de viver meu primeiro beijo. Nunca confidenciei isso a ninguém, era um segredo mais que sagrado.
Um homem, jovem, belo, inteligente, acolhedor, romântico e adorável, que sem nem perceberem me acolhia em seu colo para me contar histórias um pouco mais interessantes e maduras (eram histórias de humanidade, de experiências de vida, de autores e benfeitores da humanidade, não eram essas historinhas que nos contam em chats e msns da vida quando ganham um pouco de intimidade, nem de longe, o papo era profundo), e com o cafune, olhar, voz terna na sacada, com certeza, não haveria de deixar de pintar o beijo.
Muitos foram os elogios e as formas lúdicas de me dizer que eu era uma menina num corpo de mulher e que segundo ele, um olhar que não se sabia o que queria, se era comer cada palavra que era dita por uma sedenta ansiedade por saber ou se era um olhar de mulher querendo alimentar instintos de quem queria descobrir o que era o primeiro toque e o beijo.
Nunca gostei de textos que abordem de forma piegas esse momento e esses fatos, mas hoje deu vontade de tratar do assunto, pois lembrei da frase que tanto ri, que ao deitar-se ao meu lado, meus pais dormindo e ele no meu travesseiro e respeitosamente ao meu lado veio suavemente falando: "Um dia, eu venho aqui com meu cavalo branco, preferencialmente quando você já tiver 18, claro, e eu grito seu nome, jogo uma flor e você joga as tranças pra eu vir te pegar e salvar das garras de quem te sufoca?"
Eu ria muito, e ao mesmo tempo adorava aquele tipo de analogia.
Ele conhecia meus pais, sabia dos conflitos e problemas que sempre passei, e até hoje são complexos, porém ele sabia que se alguém não viesse me "salvar" ou então me libertasse desse seqüestro de mim mesma, muito dificilmente eu poderia me libertar.
Outro grande exemplo, foi do pai de uma amiga minha, que curiosamente virei meio mundo pra revê-la e falar com ela, e ontem apareceu no meu Orkut me lembrando das palavras de seu pai: "Cris, você é uma menina linda, ótima, inteligente, promissora, mas enquanto tiver determinadas dependências e amarras, não será feliz, não crescerá e não prosperará." (com devidas adaptações de suas palavras, pois lembro-me de cada uma delas ao me levar de volta pra casa depois de estudar o dia todo com a minha grande amiga e ele me ser grato pela atenção, como se precisasse, porque a amo até hoje como uma verdadeira irmã).
Outro momento foi quando fui submetida a uma mamoplastia redutora - cirurgia onde tirei muito de meu busto - e meu cirurgião que gostava muito de conversar comigo, e o tinha como uma pessoa que representava quase a um pai, Dr. Oswaldo Pigossi, que ele me falou o seguinte: "Rezarei todos os dias para que ele te dê um bom marido, pois você merece, porque quem a criou
" Não preciso falar mais nada, não é? (vale dizer que minha mãe sempre foi uma heroína em me defender e estar ao meu lado pra tudo me dar e ajudar nos meus estudos, não julgo a quem me faz tais perseguissões e seqüestro de mim mesma, mas hoje entendendo, sei que preciso me libertar
)
Aliás, saudade do Oswaldo, um grande homem, que muitas vezes era diminuído por ser um homem lindo, mas ele era pra mim muito mais do que um bonito cirurgião, pois era família, nada fútil e protetor, eu realmente me entreguei e me entregaria totalmente a ele, no sentido de confiar meu corpo a esse homem. Ele fez um trabalho exímio mesmo com todas as dificuldades e lutas dentro do processo todo.
Onde quero chegar com essas lembranças, pessoas importantes na minha vida e para que expôr dessa maneira?
Pelo seguinte fato: não existem salvadores e nem príncipes, o que existe de fato é o seqüestrador e a pessoa que foi seqüestrada, já trata Pe Fábio de Melo com propriedade em seu livro que estou degustando da leitura com muita calma para não acabar caindo num abismo de mim mesma, pois há muitas passagens com as quais me identifico, no título "Quem me roubou de mim?", Ed. Canção Nova.
Somos seqüestrados muitas vezes por não termos nenhuma habilidade de nos resguardar e nem nos proteger das garras do seqüestrador e muitas vezes são armadilhas que nós por curiosidade ou por sermos seduzidos colocamos o pé na arapuca e fomos pegos porque quisemos.
Isso mesmo: por livre e espontânea vontade.
O que fazer?
Essa é a questão, pois uma vez seqüestrado, dependendo do grau de dependência dessa relação ou das raízes por ela já criadas o trabalho de reconstituíção de forças para o resgate de nossa própria identidade e subjetividade é árduo, e cheio de pedrinhas, tombamos, recaímos e só nós mesmos poderemos correr pra ele, ou nos deixarmos para a vida toda estarmos submetidos a esse verdadeiro círculo ou ciclo, como queiram, vicioso.
E o que fazer?
Vários caminhos podem ser percorridos, mas só o seqüestrado quando consciente dessa necessidade poderá encontrar o melhor e nem sempre mais curto para seguir, com eficácia.
Como conseguir?
Questionando-se, não se permitindo teleguiar, não se permitir ser transgredido, não se deixar ser agredido.
O que eu espero?
Que além de mim, muitos mais consigam achar esse caminho tão almejado por todos nós os seqüestrados por uma espécie de algoz de nossas energias e vidas, para poder o horizonte vislumbrar e um ar puro profundamente respirar, livres, felizes, bonitos e NÓS MESMOS.
Conta-se que um fanático rei mandou construir uma cama de ouro, muitíssimo valiosa, adornada com milhares de diamantes e mandou que a colocassem no quarto de hóspedes do palácio. Sempre que havia convidados o rei elogiava a cama e dizia do prazer que sentia por receber pessoas tão ilustres. Porém, existia uma condição: o convidado teria que se encaixar na cama que fora fabricada sob medida. Se fosse gordo, o hóspede deveria ser cortado para caber na cama, com a desculpa do preço e do valor da cama.
Era impossível encontrar alguém que se ajustasse ao tamanho do leito real, porque o homem médio não existe e o móvel do político-rei era de tamanho único, mas as pessoas são diferentes. Sendo o rei matemático, mandou medir a altura de todos os cidadãos e dividiu o resultado entre os cidadãos de sua cidade, assim obteve o tamanho do homem médio.
Na cidade havia pequenos, gente jovem, gente idosa, pigmeus, gigantes, porém o homem mediano não havia. E a cama do rei continuava matando o gordo, o magro, o baixo, o alto... O rei não tinha culpa nenhuma, ele tinha o maior prazer de receber as pessoas, elas eram culpadas, porque não cabiam na cama preciosa do rei. Tão hospitaleiro e tão bom! Ele tinha uma equipe de funcionários aptos para esticar o baixinho até caber na cama. Chegava morto, claro! Eram muito esforçados aqueles funcionários públicos, mas o homem era baixinho, a culpa era dele!
Que lição pode-se aprender! As políticas públicas existem, lindas, perfeitas, humanas, caríssimas, preciosas! Só que o cidadão não se ajusta a elas; eles não se encaixam nos hospitais abarrotados e com filas de espera, não se encaixam nas escolas sem professores, não se encaixam nas ruas infestadas de bandidos soltos, atirando pra todo lado, mas o rei tem o maior prazer de fazer o enterro do hóspede de graça - de graça não - toma o dinheiro do baixo, do gordo, do magro, do alto e o investe num cemitério pobre, cheio de mato, abandonado e triste, sem flores. O defunto foi culpado, porque não teve dinheiro para fazer um plano de saúde e um plano pós-vida. Que culpa tem o rei?
A educação, esta sim, é a verdadeira culpada! Por que não se educa para a competência de enxergar e distinguir políticas públicas de políticas privadas, mas, principalmente, aquelas que deveriam ir diretamente para as privadas públicas?
Ivone Boechat
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Foi ao visitar o hospital que o menino conheceu a garota doente. Ao entrar, ele teve uma vaga impressão de tristeza. Achou estranho. Afinal, o médico lhe mostrou um grande armário com pílulas contra tosse, pomada amarela contra bolhas e pó branco contra febre. Mostro-lhe a sala onde se podia olhar através do corpo de uma pessoa como através de uma janela, para ver onde a doença se escondeu. Mostrou-lhe outra com espelho, onde se operavam tantas coisas que ameaçavam a vida
- Estranho,pensava o garoto. Se aqui impedem o mal de ir adiante, tudo devia parecer alegre e feliz. Por que estou sentindo tanta tristeza?
O médico lhe explicou como a doença insistia em entrar no corpo das pessoas. Que havia mil espécies de doenças, que usavam máscaras para que não pudessem ser reconhecidas e como era difícil manter a saúde.
Explicou ainda que era preciso estudar muito para desmascarar, desanimar a doença, colocá-la para fora e atrair a saúde, impedindo-a de fugir.Mas, quando entrou no quarto da doentinha, ele a achou muito bonita, mas pálida. Os cabelos se esparramavam pelo travesseiro.
Ela lhe disse que não podia andar. Mas também não tinha muita importância porque ela não tinha lugar nenhum para ir. Roberto lhe falou do jardim, cheio de flores, que ele tinha em sua casa. Ela pareceu se animar um pouco e respondeu que se tivesse um jardim, talvez sentisse vontade de sarar, para passear entre as flores. Enquanto ela continuava desfilando sua tristeza, contando das pílulas e injeções que devia tomar todos os dias e dos exercícios que precisava fazer, Roberto pensava:
- Para esta menina sarar, é preciso que ela deseje ver o dia seguinte. Se ela tivesse uma flor, com sua maneira toda especial de se abrir, de improvisar surpresas, talvez quisesse sarar.
Uma flor que cresce é uma verdadeira adivinhação que recomeça cada manhã. Um dia ela entreabre um botão, num outro desfralda uma folha mais verde que uma rã, num outro desenrola uma pétala.
- Talvez esta menina esqueça a doença, esperando cada dia uma surpresa.
Roberto afirmou que ela iria sarar e desejou ardentemente isto. Depois foi providenciar flores, diversas flores e as colocou sobre a mesa, perto da janela, aos pés da cama.
Trouxe uma esplêndida rosa, que parecia ir lentamente abrindo suas pétalas como se estivesse envergonhada ou talvez quisesse guardar a surpresa para outro dia. Então, a menina que somente ficava olhando o teto e contando os buraquinhos da madeira, contemplou as flores e sorriu. Naquela noite mesmo a tristeza saiu pela janela e a menina começou a melhorar.
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