Distopia virtual

A edição de julho e agosto da revista The Atlantic traz na capa uma incômoda questão: “Estará o Google nos tornando estúpidos?” Nicholas Carr assina a matéria de 4.193 palavras e muitas provocações. A perspectiva crítica não é nova. Nos anos 70, a IBM e seus paquidérmicos mainframes serviram de inspiração para o temível HAL, o computador do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick. Nos anos 90, não faltaram teorias conspiratórias contra a Microsoft ou libelos contra os efeitos danosos do PowerPoint e do MS-Word. O alvo do momento é a onipresente Google, por seus ambiciosos planos de “organizar o conhecimento humano”.

O incômodo humano com os avanços tecnológicos é antigo. Como lembra Carr, Sócrates lamentava o desenvolvimento da escrita. O ateniense viveu entre 470 a.C. e 399 a.C. e foi um dos fundadores da filosofia ocidental, mas não deixou registros. Salvou-nos Platão, que o transformou em personagem de seus diálogos. Sócrates temia que as pessoas passassem a contar com a palavra escrita como um substituto para o conhecimento que antes levavam em suas mentes, tornando-se portadoras de grandes quantidades de informações, mas sem lhes compreender propriamente o significado. Isso faria com que fossem consideradas sábias, quando na verdade eram essencialmente ignorantes. No século XV, com o desenvolvimento dos sistemas de impressão, por Johannes Gutenberg, uma nova onda de temores afligiu os pensantes. O medo que então se instalou foi de que a ampliação da disponibilidade de livros provocasse preguiça intelectual, tornasse os indivíduos menos estudiosos e enfraquecesse suas mentes.

Não se pode dizer que os medos eram infundados. Muitos efeitos negativos foram comprovados como verdadeiros, assim como os enormes benefícios que não foram inicialmente previstos. Da mesma forma, não se deve ignorar os incômodos gerados pela disseminação das novas tecnologias, ainda que as vantagens percebidas sejam inegáveis.

Em 1882, lembra Carr, a visão de Friedrich Nietzsche começara a falhar. Escrever, para o filósofo, transformara-se em agonia. Salvou-o uma máquina de escrever. Porém, a tecnologia cobrou seu preço. O texto de Nietzsche tornou-se mais compacto e telegráfico. O meio havia transformado o conteúdo, a forma de escrever e, portanto, a forma de pensar. Se o mesmo é verdade para as tecnologias atuais, então estamos diante de um novo desafio.

A convivência intensa com websites, e-mails, orkuts, facebooks e youtubes está alterando o uso que fazemos da memória e interferindo em nossa atividade cerebral. As novas mídias provêem informações e ainda influenciam a forma como refletimos sobre o que vemos e lemos. Temos cada vez mais dificuldade para enfrentar textos longos e densos. Concentração e contemplação tornaram-se capacidades raras. A atenção se dispersa, os olhos lacrimejam, a cabeça pesa. Estamos nos acostumando a pensar em soluços, em ziguezague. Estudos recentes mostram que adotamos na internet um comportamento similar ao zapping diante da tevê. Saltamos de página em página de forma quase randômica. Não lemos, no sentido tradicional da palavra, acompanhando uma trajetória ou mergulhando, pela pena do autor, em imagens e sentidos.

Na internet, embarcamos em uma navegação desorientada, por um mar de signos que nem sempre se relacionam. Terminamos as jornadas como o turista que visita cinco países em sete dias e retorna considerando-se conhecedor da cultura européia. Maryanne Wolf, psicóloga da Tufts University, teme que o novo estilo enfraqueça nossa capacidade de leitura mais profunda. Na internet, segundo ela, apenas decodificamos informações. Por excesso de informação e pressão de tempo, não avaliamos ou interpretamos os textos.

Para Carr, o quartel-general da Google, na Califórnia – o Gloogleplex – é a igreja maior da internet e sua religião é o taylorismo. Carr se refere à administração científica e aos estudos de tempos e movimentos desenvolvidos no início do século XX por Frederick Winslow Taylor. Seus métodos, ao buscar ganhos de produtividade, transformavam operários em autômatos. Segundo a visão dos senhores da Google, a internet deve ser uma máquina hipereficiente, um algoritmo perfeito, a permear toda a atividade cerebral da nossa Era do Conhecimento. O que Taylor fez pelo trabalho manual, a Google está fazendo pelo trabalho mental, dispara o autor. Talvez estejamos, de fato, nos transformando em “homens-panqueca”, amplos e finos, capazes de nos conectar com uma vasta rede, mas sem profundidade alguma. Como afirmava o filósofo praiano Bordallo, muito antes da internet: no fundo, é raso.

www.cartacapital.com.br/app/coluna.jsp?a=2&a2=5&i=1466

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