Era uma vez um navegante desconhecido

Ninguém sabia seu nome nem de onde tinha vindo. Apenas recordavam de sua pequena aberração: carregava consigo por aonde ia uma carteira de couro que consultava nos momentos mais obscuros. Quando levada à lâmpada, refletia uma luz resplandecente. Mas não sabia de fato de onde: do pequeno artefato ou dos olhos do rapaz. Era pequena, cabia na palma da mão, e era vestida com um couro velho e desgastado, sofrido pela intempérie e maus tratos. E o navegante seguia andarilho por essas terras e por esses mares, em uma época em que a vida não era uma condição, mas uma aventura. E o mundo era grande demais para caber em uma casca de noz.

Sua história era um mito. Dizia-se que era um entre três irmãos: o mais velho havia sido capturado pelo circo e era apresentado como o grande criador de pulgas, até sua misteriosa morte à beira da estrada na cama de uma puta; o mais novo, tão ensandecido que estava para sair dessa vida, que criou asas e penas até que, em um belo dia, voou, mas, não surpreendentemente, acabou sendo queimado pela inveja do sol, que o abateu como um anjo caído. De fato, quando seu pai morreu, sentiu-se por demais sozinho. A mãe, ao velar o corpo, havia chorado tanto que no inferno fez-se mar, lugar onde vagam os mortos do deserto. Ficou parada por nove dias e novas noites olhando para o horizonte, como que seguindo o corpo do marido, que já havia desaparecido no nada. E para o nada ficou fitando, alimentando a água salgada de lágrimas, de maneira que, quando essas secaram, havia criado raízes da terra e transformara-se em um girassol – única flor entre o mar e o deserto. Como já fazia tempo o suficiente que sua mãe, sentindo uma terrível dor de cabeça, havia cuspido-lhe ao mundo já pronto, crescido e vestido, que pegou toda a madeira de sua casa e construiu um barco com o qual passou a atravessar todos os mares.

As lendas que cercavam suas viagens! Havia resistido ao canto das sereias e à sedução das medusas. Conheceu terras inexploradas com nativos de cor mais negra que a noite e dentes mais claro que o marfim. Passou anos dentro do estômago de uma baleia, conhecendo, assim, os mares e animais mais exóticos. Reza a lenda que chegou a uma terra – sabe-se lá se não era outro mundo! – onde o tempo derretia lentamente. Conheceu um fauno que habitava uma floresta em que todos os seus desenhos e sonhos eram realizados pelas mais formosas ninfas. Aprendera a ler, a escrever e a sonhar com os mais tristes poetas, lutou contra monstros de um olho só e perdeu-se em labirintos. Era considerado sábio, guerreiro e provedor de boa sorte e de milagres. Era venerado e temido, nunca direcionando uma palavra só a qualquer moribundo sequer. A destreza e a calma em cada um de seus movimentos traduziam todas as suas vontades. Com um olhar conseguia um copo de vinho, um amor por uma noite ou uma música para dançar. E sempre, sempre que nada o impedia, pegava a pequena carteira – trapo de couro mal- tratado – e passava horas admirando seu conteúdo.

Foi só então uma criança, que desconhecia seu mistério e seu encanto, quem desvendou seu mistério. Por curiosidade, perguntou-lhe aonde havia conseguido tal tesouro e, com uma voz serena e mais profunda que o mais fundo dos mares, escutou a mais verdadeira de todas as lendas: em uma terra cheia de mistérios e perdições, a uma criatura de caráter curioso e gosmento, sentada em um cogumelo e gozando de seu néctar dos deuses, cabia o segredo de toda uma vida, conferido por aquele que tudo vê e tudo sente. Na presença de um quadro que refletia toda a escuridão de sua alma, a pequena criatura, perante suas cadeiras com rodas em cima e no meio de uma tempestade de homens de cartola e guarda-chuvas, concedeu-lhe, de bom grado e pelo bem da hospitalidade, a causa e a solução para todos os seus problemas, entregando-lhe a pequena carteira corroída pelo tempo, em honra de todas as suas histórias.

Depois de ouvir tal coisa, tomada por uma vontade incontrolável, a criança desejou saber qual era o presente. E como não se pode ignorar o desejo de uma criança – sabe-se muito bem que azar isso trará -, o navegante mostrou-lhe o artefato. Sob o juramento de silêncio sepulcral, a criança examinou curiosamente todo o objeto. Tomada por sua sabedoria infantil, entendeu o significado e, somente em seu leito de morte, anos mais tarde, quando há muito não ouvia sobre o misterioso navegante, é que, em um suspiro inaudível, ela revelou a natureza daquele segredo tão inestimável. Recordando-se não só do pequeno objeto, mas da sensação que aquele dia havia lhe proporcionado, a criança – que, depois de anos, continuou uma criança -, lembrando-se do espelho com a superfície do mais fino cristal, morreu sorrindo.

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