Esquecer ou não, eis a questão

O neurocientista Yadin Dudai, do Instituto Weiszmann, em Israel, descobriu o que muitos considerariam uma possibilidade de tratamento miraculoso: uma substância capaz de apagar memórias, mesmo as antigas e que em teoria já estariam “consolidadas” no cérebro.

A droga chama-se ZIP -muito apropriadamente, a onomatopeia usada em inglês para algo que desaparece- e bloqueia uma enzima implicada nas mudanças celulares que possibilitam a formação de memórias.

Aplique ZIP no córtex de um rato e suas memórias antigas parecem sumir instantaneamente -como um disco rígido reformatado. Mil e uma utilidades do ZIP logo vêm à cabeça. Você deseja esquecer um trauma de infância? ZIP nele. Um ex-namorado? O enjoo que ficou associado às roupas da época da gravidez? ZIP também.

Há empecilhos práticos a serem considerados, claro. Primeiro, a substância precisa ser aplicada diretamente no córtex, o que requer, na melhor das hipóteses, que se faça um buraco na cabeça. Segundo, os efeitos “removedores” da droga parecem ser vastos, e ainda não se sabe quantas memórias se perdem além daquela que foi testada (é um dos problemas de usar ratos em laboratórios; eles não respondem diretamente às perguntas).

Mas a questão que realmente importa me parece ser outra. Lembro-me de uma palestra extremamente lúcida de Thomas Murray, especialista em ética que serviu no Comitê Olímpico Antidoping dos EUA, sobre a ética do uso de substâncias para modificar o desempenho e a memória. Murray falava da pressão que os atletas sofrem para usar drogas e ilustrava suas opiniões com histórias de sua experiência com atletas de elite quando subitamente passou a comentar uma experiência pessoal, a mais dolorosa possível: a perda de sua filha de 16 anos, assassinada pelo namorado sociopata.

ZIP, na época, era uma possibilidade teórica. Mas ele usaria uma substância como essa, que pudesse apagar as memórias dolorosas associadas à filha? Não. A dor de perdê-la era uma parte integral do que lhe restava da filha: a memória. Esquecer essa dor seria uma desonra à vida breve da filha e às marcas que ela deixou no pai.

Talvez algumas dores devam de fato ser deixadas para trás -objetivo, aliás, de tantas terapias: ressignificar as dores. Por outro lado, se somos a soma de nossas memórias, recorrer ao ZIP seria passar uma borracha em parte de nossa essência: ZIP!

SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro “Fique de Bem com o Seu Cérebro” (ed. Sextante) e do blog “A Neurocientista de Plantão” (www.suzanaherculanohouzel.com)

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