
Ainda falando de amor romântico (análise iniciada no post anterior), há outra razão, mais visível, mais concreta, para os desacertos nas relações amorosas: os casais desejam o entendimento, mas sacam da espada em vez de recorrer à harpa. A analogia é de Robert A. Johnson, no livro We – A Chave da Psicologia do Amor Romântico: “A espada não é capaz de construir relacionamentos; ela não pode resolver coisa alguma; não pode unir as coisas; ela só consegue rasgar. Se você quiser ‘juntar os pedaços’ e construir um bom relacionamento, então vai precisar aprender a usar a linguagem da harpa. Você precisa dar segurança à outra pessoa, expressar seu amor, seus sentimentos e sua dedicação. Esta é uma lei absoluta: a espada fere e separa; a harpa une e cicratiza” (Johnson, 1989, pág.54).
A espada simboliza o intelecto, a lógica. A harpa, o sentimento, o lirismo, a intuição e o não-racional. “Deixar a espada significa parar de tentar entender pelo intelecto ou pela lógica, parar de tentar forçar as coisas. Usar a harpa significa esperar pacientemente, usando a voz suave que vem de dentro, esperar pela sabedoria que vem não da lógica ou da atividade, mas do sentimento, da intuição, do não racional e do lírico” (idem, pág.58).
E para que ambos recorram à harpa em vez de usarem a espada é necessário que o lado feminino esteja participando; que o lado feminino atue, tanto no homem quanto na mulher. Na atuação clínica, os psicólogos junguianos conduzem a essa integração recorrendo, principalmente, à imaginação ativa e trabalhando com os sonhos do paciente.
Obviamente, o livro citado vai muito além dessa analogia. Trata-se de uma análise teórica acerca da psicologia do amor romântico; busca revelar a chave secreta para desvendar o mistério dessa nossa dimensão. Resumidamente, na visão de Johnson, a chave é a percepção de que o amor romântico está relacionado com o desejo de elevação espiritual, a aspirações religiosas originárias de resquícios do amor cortês ou courtezia, a crença medieval de que o amor verdadeiro devia ser a adoração extática de um homem por uma mulher e vice-versa, sendo o ser amado a imagem da perfeição. Em decorrência dessa herança, fazemos projeções inconscientes que dificultam o entendimento.
O “amor cortez”, vigente no século XII e descrito na literatura pela primeira vez no mito de Tristão e Isolda, tinha três características. A primeira era a impossibilidade de haver relacionamento íntimo ou sexual entre o cavaleiro e a dama; o envolvimento era de natureza ideal, espiritual, com a finalidade de levá-los a cultivar sentimentos refinados e sutis; a atração física deveria ser sublimada. A segunda exigência do amor cortêz era que jamais cavaleiro e dama se casassem. Em razão disso, era comum a dama ser casada com outro cavaleiro, podendo o cavaleiro, mesmo assim, adorá-la , tratá-la como uma divindade, tornando-a alvo de suas aspirações espirituais. Aliás, era esse o verdadeiro propósito do amor cortêz, conduzir os dois à elevação, à capacidade de transcender sensações e sentimentos.
A terceira exigência era que ambos deviam manter acesa a paixão, fazendo arder intensamente a chama do desejo um pelo outro, mas esforçando-se para espiritualizar esse sentimento. Os dois deveriam ser símbolos do mundo arquetípico divino e nunca reduzir a paixão aos aspectos mundanos do sexo ou do casamento.
O amor romântico procede daí, isto é, começou como busca de elevação espiritual. Inconscientemente, procuramos ainda este mesmo caminho nas nossas relações amorosas. Esse ideal de amor cortêz se apoderou de nosso psiquismo e se tornou uma força arquetípica inconsciente com grande repercussão na nossa vida.
O impulso religioso é uma busca pela totalidade, pelo self. Quando uma pessoa se torna objeto de adoração de outra, ela adquire um poder numinoso, um potencial divino para dar luz à ao ser que a ama – ou de apagar a luz, quando a paixão termina. O ser amado é visto como imagem e símbolo de Deus (imago dei). Ao valorizar tanto e buscar com desenfreada ânsia o amor romântico, o homem ocidental está na verdade buscando sua totalidade, perseguindo aspirações religiosas.
Acontece que o homem atual nega suas aspirações espirituais, influenciado por idéias de cientificismo distorcido e super valorização do que é concreto, objetivo e material, em detrimento das questões do espírito, das verdades subjetivas da alma. Há uma valorização exagerada do poder de produção, da necessidade de controlar, possuir e consumir. Os anseios espirituais estão relegados aos subterrâneos da alma. Mas eles se fazem presentes, se manifestam como força inconsciente nas nossas projeções, nos êxtases e desesperos, nas paixões e em outras reações envolvidas no amor romântico.
Negado, reprimido, o instinto religioso se desloca para onde ele pode atuar: os envolvimentos amorosos. “O mundo da alma e do espírito, a força irresistível da potencialidade religiosa da psique, abruptamente, invade o mundo comum dos relacionamentos humanos. Aquilo que sempre desejamos – a visão de unidade e do supremo propósito – nos é, de uma vez, desvelado na forma de outro ser humano” (Johnson, 1989, página 90).
Em razão disso, novelas, livros, filmes, peças de teatro, músicas e qualquer “produto” que explore as intensas paixões fazem tanto sucesso. Mas é também por isso que geralmente fracassam nossos esforços em ter casamentos e relações perfeitos. Esses envolvimentos estão contaminados de projeções e aspirações vigorosas e desconhecidas. Pegamos nosso anseio de totalidade e o projetamos nos nossos amores, um redirecionamento de energias que tende a falhar porque cada um deve ser pleno e total em si mesmo. Se acreditamos, inconscientemente, que nosso parceiro ou nossa parceira tem obrigação de nos manter sempre feliz, de tornar nossa vida plena, vamos exigir muito do outro, vamos cobrar atitudes e resultados impossíveis de serem atingidos.
Referências bibliográficas:
. Edinger, Edward F. Anatomia da Psique: O Simbolismo Alquímico da Psicoterapia. São Paulo, Editora Cultrix, 2005.
. Johnson, Robert A. Imaginação Ativa (Inner Work): como trabalhar com sonhos, símbolos e fantasias. São Paulo, Editora Mercuryo, 2003.
We: A Chave da Psicologia do Amor Romântico. São Paulo, Editora
Mercuryo,1989.
. Jung, C. Gustav. Psicologia e Religião. Petrópolis (RJ), Ed. Vozes, 1984.
. Memórias, sonhos e Reflexões. São Paulo, Ed. Nova Fronteira, 2005.
. Stein, Murray. Jung, o Mapa da Alma. São Paulo, Editora Cultrix, 2006.