Terra de Marlboro

Acordou com o som de esporas e de passos no chão árido. O calor deixava seus lábios ressecados. Sentia sede, muita sede. Mal conseguia manter os olhos abertos por causa do sol cegante. Ao seu redor, uma brisa quente e o mormaço que saia da terra seca. O céu infinitamente azul coloria o cenário marrom e sem vida. Podia-se escutar o sopro do vento, e o som de esporas, e o som de passos.
Então, um pouco a frente de sua cama, em um dos seus lados, surgiu o herói com botas marrom até o meio da panturrilha, blusa abarrotada, um chapéu branco e um lenço vermelho que pendia no seu pescoço grosso. A jaqueta, mastigada pelo tempo, denunciava os perigos que já enfrentara. Estava suja de terra, de poeira, de sangue. A calça era uma continuação das botas, com um toque de revólveres prata e munição. Embaixo do céu límpido, ganhava certa áurea. E, nos olhos negros que enfeitavam a pele dourada, podia-se sentir sua coragem.
Do outro lado, surgiu sua antítese. Cavaleiro negro com botas, blusa, lenço e chapéu tão escuros quanto seus olhos. Seu alazão preto cumprimentou o inimigo dando duas voltas no mesmo lugar, como um cão que corre atrás do seu rabo. Era assim que ele dizia que o jogo seria rápido e limpo. Duas armas, duas voltas. Do cavaleiro negro, brilhavam suas esporas prateadas e as duas armas com detalhes marfim. No seu rosto, podiam-se ver rugas sutilmente disfarçadas pela sombra do chapéu.
O cavaleiro negro desceu do seu alazão, que, como um bom companheiro, posicionou-se em retaguarda, paciente. Os olhares, então, se cruzaram. Um olhava para o outro. Um reconhecia o outro. Era uma dança, uma conversa entre duas pessoas, onde se dizia tudo sem falar nada. Estava subentendido, já estava declarado.
Começaram a andar para reconhecer o terreno. Duas voltas. Os olhares nunca se afastaram, nem por um segundo. As mãos sutilmente deslizavam pelo quadril até encontrarem suas armas. Teria que ser rápido. Rápido e indolor. Voltaram para o mesmo lugar e pararam.
Sentiu uma mão acariciar os seus cabelos esvoaçantes. Na sua mão descansada no lençol branco, um calor familiar. Ecos se misturavam com o vento e ressoavam na sua cabeça. Lembrou-se da dor, lembrou-se do medo. Olhou a sua volta esperando avistar alguém ou algum sinal. E aquela onda de calor na mão e aquela carícia nos cabelos. Olhou para o céu azul. Não sabia o porquê de o céu ser azul.
De repente, o disparo. Olhou para os homens na sua frente. O vento, agora, uivava e o solo árido estava regado de sangue. Sangue. Um chapéu branco voava deserto a fora. E o corpo dourado estava atirado no chão.
Para seu espanto, em seguida, o cavaleiro negro olhou para ele. Encarou seus olhos azuis esverdeados e seu rosto envelhecido. Seus cabelos brancos brincavam com o vento, suas mãos gélidas se apoiavam no lençol branco, seu corpo frágil estava confortável na cama. Sentia-se nu, exposto, cru. Sentia medo. Mais uma vez, encostado na cama, olhou para o céu azul. Ele tinha o céu em seus olhos. O céu nos seus olhos azul esverdeados.
Vagarosamente, o cavaleiro caminhou até o pé de sua cama, onde se fixou. Seus olhos ainda buscavam o azul esverdeado, mas ele ainda olhava para cima. Agora, chorava. As lágrimas incolores molhavam silenciosamente seu rosto magro. No vento, ecos de palavras e memórias. Palavras doces de vozes sem rosto caminhavam no ritmo da brisa quente.
Veio o barulho. No ouvido, o som abafado. Fitou o cano da arma ainda com fumaça. Olhou para o lençol avermelhado. Olhou para as figuras de mãos quentes e palavras doces. Olhou para o céu mais uma vez. Sentia sede, muita sede.
No quarto, silêncio mórbido. Silêncio com ecos de um som agudo e constante. Ele se fora.

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