
Aos 84 anos, Clara Charf tem o vigor e a serenidade dos sábios. Conversei com ela em dezembro de 2008 durante um evento de comemoração antecipada dos 50 anos da Revolução Cubana, no Memorial da América Latina, em São Paulo. Clara é hoje presidente da Associação Mulheres Pela Paz, organização sem fins lucrativos que promove a paz, por meio do princípio da igualdade de gêneros. Mas sua militância é antiga, data do ano do fim da Segunda Guerra Mundial, 1945. Não por acaso foi perseguida e teve os direitos civis e políticos cassados pela ditadura militar em 1964. É conhecida também por ser a viúva de Carlos Marighella, fundador da Aliança Libertadora Nacional (ALN), assassinado em 1969 pela equipe do conhecido delegado torturador do DOPS de São Paulo, Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Nesta entrevista, Clara conta sobre sua militância política, o exílio em Cuba e a importância da revolução cubana para a América Latina e para ela, em particular.
Qual era sua participação política no período da ditadura militar?
A minha participação política não foi só durante a ditadura, eu já era militante política quando veio a ditadura. Nós já lutávamos para transformar a situação do Brasil. Sou militante desde 1945, quando terminou a Segunda Guerra Mundial, então passei por todo esse período de tentativa de construção de uma nova sociedade no Brasil. Passamos por um período legal, quando pela primeira vez na História os comunistas tiveram uma bancada de deputados e senadores. Depois fomos cassados em 1948, passei pela clandestinidade. Depois na retomada de algumas liberdades, nos diferentes governos que vieram, Juscelino, Jango, Jânio, sempre militei muito. Na política geral e, particularmente, no trabalho de mulheres. Então quando veio a ditadura, começaram as perseguições. Antes a atividade geral no Brasil de mulheres, jovens, camponeses, operários, intelectuais, movimentos de massa foi muito grande. E, finalmente, no auge do governo do Jango, quando a luta pelas reformas de base se tornaram muito poderosas, muito intensas, os americanos começaram a preparar o golpe, já vinham preparando e acabaram de deflagrá-lo em 64. Criou-se uma situação, nós tivemos a casa invadida. Trabalhamos na clandestinidade, mudando de uma casa para outra, de uma cidade para outra. Então veio o AI-5 e cassou meus direitos políticos. Eu sou das primeiras mulheres a ter os direitos civis e políticos cassados por dez anos. Isso significa que você não pode usar seu nome, trabalhar, nem se mover, vigiada o tempo todo. Uma situação dramática. Isso piorou ainda mais com a morte do Marighella que foi meu companheiro. Ele foi assassinado no dia 4 de novembro de 1969. Aí a situação ficou cada dia mais difícil.
Como foi a sua ida para Cuba?
Eu já não tinha mais condições de ficar no Brasil, perseguida e escondida. Muitas pessoas saíram daqui, mas ninguém foi direto para Cuba, porque não tinha possibilidade direta. Saíam por diferentes lugares da fronteira. Muitos brasileiros passaram por outros países e foram para o Chile, por exemplo, tiveram de sair de lá quando veio o golpe. Os americanos tinham uma política igual para todo o continente. Quando houve liberdade no Brasil, houve liberdade em todos os países da América Latina. Quando começou a Guerra Fria e eles começaram a mudar a situação, e os comunistas, socialistas, democratas, etc, não tinham muita liberdade para trabalhar, foi igual em todo o continente. Então, o golpe estava sendo preparado não só no Brasil, mas em diferentes países da América Latina. No caso do Brasil, eu saí, tive de passar clandestina por outros países até chegar em Cuba Por que? Nós sempre fomos defensores da revolução cubana, eu já tinha ido a Cuba muito rapidamente em 62. Sou a única brasileira que foi a Cuba quando houve a crise dos mísseis, uma casualidade, porque fui convidada para o Congresso de Mulheres, aí se deu a crise e o Congresso não se realizou. Foi lá que conheci o Che Guevara muito rapidamente, isso foi em 62. Em 63 eu participei do Congreso Mundial de Mulheres em Moscou, em 64 foi o golpe militar aqui. Com a minha ida para Cuba o que aconteceu? Primeiro, como nós já fazíamos parte de todo o trabalho de solidariedade a Cuba, e achávamos muito importante conhecer aquela experiência, ver como era o dia-a-dia. Porque uma coisa é você teoricamente pregar uma coisa, outra coisa é ver, e eu tinha muita curiosidade de ver como era o dia-a-dia da população cubana. E Cuba já estava recebendo pessoas perseguidas. Eu posso dizer que foi talvez o país mais solidário para os brasileiros, entre tantos outros, Cuba abriu as portas não só para receber pessoas doentes, deu trabalho para todo mundo, alojavam, davam casa, deram trabalho para quem quisesse. Eu mesma trabalhei como tradutora, aprendi a profissão de tradutora de cabine. E no dia-a-dia de trabalho e contato com a população, outros brasileiros e pessoas de outros países, você se dá conta do valor imenso da solidariedade que Cuba prestou não só aos brasileiros, mas a todos que estavam procurando fugir da repressão de seus países. Eu podia ficar aqui horas contando os exemplos de solidariedade da população cubana. Via no dia-a-dia aquela coisa simples, porque é uma sociedade pobre, mas o mais incrível era exatamente aquela pobreza, aquela dignidade, aquela solidariedade nas mínimas coisas, e reforçavam, ou pelo menos reforçou em mim a ideia de que o socialismo ajuda muito a criar esses valores.
Qual é, na sua opinião, o sentido histórico da revolução cubana?
É importantíssima, a primeira revolução socialista na América. A primeira militância, a grande experiência histórica era a revolução socialista soviética. Ajudou a derrotar o nazismo, perdeu 20 milhões de habitantes na luta contra o nazismo. Então para nós, jovens daquela época, essa era a grande referência. Passados alguns anos, uma outra referência passou a ser a revolução chinesa, vitoriosa em 1949. E, depois, em 1959 a Revolução Cubana. Só que a Revolução Cubana é no nosso continente. Era a mais próxima, havia uma identidade muito maior. E a coragem, valentia com que o povo cubano se portou diante daqueles acontecimentos todos, teve uma influência muito grande em todo processo revolucionário na América Latina.
Quais são hoje as expectativas da Revolução Cubana?
Eu tenho a opinião de que Cuba tem resistido heroicamente há 50 anos. Passaram por momentos dificílimos, todo tipo de pressão, dificuldade. O embargo é uma coisa dramática. Eu que vivi nove anos lá sei o que é a dificuldade de você comerciar com outros povos, fazer intercâmbio com outros povos. Mas Cuba, apesar de tudo isso, sempre criou fatos que permitiram o contato dos povos com ela, por exemplo, quando criou a Casa das Américas, foi uma coisa fantástica. Concursos que eles começaram a fazer de cultura, literatura, que mesmo com o embargo, repressão, as pessoas iam para lá, participavam do júri. Criaram os festivais da juventude, tudo que podiam imaginar, eles criavam em Cuba para facilitar a ida das pessoas para lá. Não só para reforçar o lado da solidariedade, mas você via também como eles enfrentavam essa dificuldade toda. Só de ser um país que enfrentou 50 anos e não se entregou nunca, claro que mudou muito a situação de Cuba e do mundo, mas acho que um país que passou por toda a experiência, nas novas condições da América, por exemplo, com a eleição de Lula no Brasil, e toda essa mudança que está havendo no continente, eu acho que há possibilidades bem maiores hoje de abrir o cerco em torno de Cuba, para eles poderem se relacionar com todos os povos, continuar sendo a sociedade que decidiram e optaram por ela. Fazer um intercâmbio maior com todos os povos. Eu tenho uma perspectiva muito otimista, muito difícil ainda, mas muito otimista.